quarta-feira, 27 de janeiro de 2010

Dá-lhe assistencialismo... Ou seria oportunismo???



Bolsa Família é superavaliado, diz sociólogo especializado em políticas sociais

27/01 - 09:01 - Rodrigo de Almeida, iG Rio de Janeiro

Principal vitrine do governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, o Bolsa Família é um bom programa social, custa pouco ao Brasil e vem mostrando capacidade de retirar da miséria milhões de brasileiros. Ponto. Creditar-lhe mais virtudes do que isso é “fanfarra política”, é dar-lhe “mais importância do que efetivamente tem”, é ignorar que ainda persistem muitas deficiências nos campos da educação e da saúde, por exemplo. O diagnóstico crítico é do sociólogo Simon Schwartzman, que vem se debruçando sobre questões ligadas a pobreza e políticas sociais.
Em entrevista ao iG, o presidente do Instituto de Estudos do Trabalho e Sociedade (IETS) afirma que o País padece de uma “inflação de intenções” em relação ao Bolsa Família. Culpa, segundo ele, do excessivo uso político do programa. “O programa tomou uma proporção tão grande que deixou em segundo plano as outras políticas sociais”, sugere. “A saúde é um desastre e, na educação, não se sabe o que é prioridade”.
Ex-presidente do IBGE, instituição que dirigiu durante todo o primeiro mandato do presidente Fernando Henrique Cardoso, Schwartzman publicou recentemente um longo artigo em que põe em xeque as virtudes atribuídas ao Bolsa Família. Intelectual de linhagem próxima aos tucanos, o sociólogo compara a seguir os mandatos de FHC e Lula, de quem é mais crítico: “o governo Lula não tinha nenhuma ideia do que iria fazer. A única que resistiu foi o Bolsa Família”.

iG - Em seu estudo sobre o Bolsa Família, o senhor conclui que os programas de transferência de renda produzem efeitos benéficos, dando alívio para situações de penúria, mas não são apropriados para permitir a saída efetiva da pobreza, do desemprego ou do subemprego. Só o alívio para situações de penúria já não justificaria o elogio a programas do gênero?
Simon Schwartzman - Dar dinheiro para pessoas em situação de penúria é algo válido e plenamente justificável. O Brasil não tem tradição de dar dinheiro para os pobres, aqui costumamos dar dinheiro para pessoas que não precisam. O Bolsa Família atinge uma população adequada. Isso não significa que não tenha problemas. Não está completamente focalizado. Privilegia as populações que vivem no campo e não apóia a pobreza urbana. De qualquer maneira, atende à necessidade de uma extensa população que não tem acesso ao mercado de trabalho e que vive em condições muito precárias. Vejo dois problemas sérios. O primeiro é que é apresentado como a grande política social, quando faltam muitas outras coisas, que têm a ver com educação, emprego e saúde. Esse programa não tem quase nenhum impacto sobre essas políticas. O segundo problema que identifico é o uso político do Bolsa Família. Isso é lamentável.
iG - Não é natural que governantes usem politicamente seus programas de maior visibilidade?
Schwartzman - Não acho natural. A política social é uma responsabilidade do governo que não deve ser explorada eleitoralmente. Você pode dizer que a oposição faria isso também, mas digo que é errado nos dois casos. A inflação de intenções em relação ao Bolsa Família está muito associada a isso.
iG - O cadastro único, criado para centralizar a identificação de todas as famílias de baixa renda existentes no País, não está resolvendo os problemas de focalização?
Schwartzman - Olhei algumas estatísticas e verifiquei que 20% do dinheiro vai para gente que não precisa. A focalização em alguns estados é pior do que outras. Os pobres dos estados ricos são menos beneficiados com o programa do que os dos estados pobres. Vejo os problemas de focalização associados ao processo de cadastramento dos beneficiados pelos municípios. São informações que vêm dos prefeitos. É difícil.
iG - O senhor falou na ênfase sobre as populações rurais. Embora a pobreza nas periferias urbanas seja um problema grave, não seria natural começar com a pobreza rural, que é mais extrema?
Schwartzman - É uma discussão complicada. O que é pobreza? Fazendo uma medição de renda monetária, o pessoal do campo terá uma renda muito baixa. Às vezes nem tem renda monetária, pois muitos plantam, colhem e são pagos em outros produtos. Na cidade isso não existe. Não sei se a pobreza rural é mais grave. A condição de vida na cidade pode ser muito pior, e o campo pode não ser tão mal. Acho que os problemas sociais mais evidentes e graves estão nas cidades. A migração gigantesca fez com que houvesse uma diminuição muito grande na população rural e uma massa enorme nas cidades. Há um fator ideológico na ideia de que o problema do Brasil está no campo. A literatura sobre pobreza discute o patamar a partir do qual uma família é considera pobre. Na tradição brasileira e dos países mais pobres, o patamar da pobreza é o mínimo necessário para que alguém não morra de fome. Contam-se aí quantas calorias são necessárias para um indivíduo. Nos países ricos é diferente. Pobreza é quem está na faixa dos 10% mais pobres. Esse critério é arbitrário. O Brasil não tem uma linha oficial de pobreza. O economista Ricardo Paes de Barros e outros especialistas definem algum critério, que em geral é uma estimativa de custo para a alimentação. Isso, evidentemente, varia por região. O preço que vale para o Nordeste não é o mesmo do Rio de Janeiro e de São Paulo.
iG - Outra discussão é se esses programas estimulariam os beneficiados a deixar de procurar trabalho.
Schwartzman - A lógica desse raciocínio é: se a pessoa está ganhando dinheiro do governo, por que precisa trabalhar? Nos EUA esse debate ficou muito intenso com um programa de apoio a mães adolescentes solteiras. Sendo mãe solteira, ganha um salário mensal do governo. Se casar ou arranjar um emprego, perde o subsídio. A consequência negativa foi que as meninas não procuravam emprego e, se conseguissem um trabalho, ficaram sem registro. E não casavam. São os chamados efeitos perversos de políticas desse tipo. É uma discussão complicada, porque o argumento soa muito reacionário. Há um certo tempo houve um debate no Brasil até sobre o iogurte que os beneficiários do Bolsa Família estavam consumindo com o dinheiro do programa. Poxa, deixe a pessoa tomar iogurte (risos). Em suma, ter um subsídio para a população de baixa renda é importante. Mas há um limite para esses recursos. A questão é como se faz política social.
iG - E como se faz?
Schwartzman - O que acontece no Brasil é que o Bolsa Família tomou uma proporção tão grande que deixou em segundo plano as outras políticas sociais. A saúde, por exemplo, é um desastre. É um horror porque está baseada numa suposição equivocada de que o governo é responsável pelo atendimento universal a custo zero. Não há viabilidade econômica para isso, daí o sistema acaba sendo impossível de ser gerido com qualidade. Na educação a mesma coisa. O PAC da educação tem 40 programas acontecendo, mas não se sabe o que é prioritário.
iG - A educação piorou no governo Lula?
Schwartzman - Hoje está melhor do que no começo do governo. Mas os maiores avanços que tivemos nessa área são todos da década de 90, quando se universalizou a educação básica e o ensino médio chegou mais ou menos onde está hoje. Na década de 2000, a educação básica não teve avanço algum.
iG - Qual foi o equívoco?
Schwartzman - O governo Lula nunca teve ideia alguma a respeito da educação. Hoje em dia o ministro Fernando Haddad tem mais ideia. Mas os ministros anteriores, Cristovam Buarque e Tarso Genro, não tinham a menor ideia do que fariam. O Cristovam tomou o tema da educação como bandeira política, mas acho que não conhece o assunto. O Haddad sabe mais claramente o que faz, dá prioridade à educação básica, à questão do abandono escolar, tem mais diálogo com a comunidade que pesquisa e discute sobre isso. Seu problema é atirar para todos os lados e de um jeito um pouco precipitado de fazer as coisas. Mas o ProUni, por exemplo, é um sucesso. Deve permitir hoje a cerca de 400 mil estudantes que tenham acesso ao ensino superior. E está sendo aperfeiçoado. Tem cumprido seu papel.
iG - O senhor questiona o impacto do Bolsa Família sobre a queda da desigualdade. Por quê?
Schwartzman - Por causa dos números. O que explica a redução da desigualdade nos últimos anos foi o crescimento da economia, o benefício concedido aos idosos e o aumento real do salário mínimo. Muitos criticam a valorização do salário mínimo porque tende a produzir desemprego e levar ao mercado informal. Mas como o Brasil teve aumento real do salário mínimo com crescimento econômico, não houve isso. Ao contrário, houve um aumento do emprego formal. Para mim, o salário mínimo foi o grande fator para a redução da pobreza. A economia cresceu, as exportações cresceram, o emprego formal cresceu, a inflação não disparou, as pessoas passaram a ter maior poder aquisitivo. Ao mesmo tempo, e isso não tem sido muito comentado, houve um achatamento do padrão de vida da classe média. Ela sofreu muito nesse processo, porque depende muito mais dos serviços, cujos preços aumentaram muito, como escolas e saúde privadas. Refiro-me às pessoas que ganham a partir de R$ 1 mil ou R$ 2 mil por mês. O mais beneficiado foi sem dúvida aquele que ganha até um salário mínimo. Quem precisa pagar escola particular continuou ganhando a mesma coisa e gastando muito mais.
iG - Com esses dilemas apontados pelo senhor, qual será a agenda do próximo governo?
Schwartzman - O Brasil agora tem de construir instituições, competências, desenvolver pessoas, aprender a maneira de fazer, experimentar... É um processo de construção de uma nova cultura, que é mais lento e está integrado ao desenvolvimento da educação, mas é fundamental para fazer um Brasil moderno. Como faço uma política de saúde? Como gerenciar hospitais? Como criar um sistema de atendimento à população? Na educação, como fazer da escola um lugar que as crianças gostem? Como formar um professor? Que método usar? É essa passagem que não estamos conseguindo fazer. Há muito o que desenvolver para o Brasil ter essa complexidade de uma sociedade moderna. São Paulo tem muito mais isso do que o Rio de Janeiro, por exemplo. Uma multiplicidade que dá riqueza a um País. A discussão deveria ser essa, e não se faremos ou não o Bolsa Família, se adotaremos ou não o sistema de cotas nas universidades. A discussão tende a ficar polarizada em termos muito pequenos. Pena que ninguém fará a campanha eleitoral com o que estou dizendo (risos). Não dá voto. As campanhas pressupõem um processo de simplificação.
iG - Observando os mandatos de Fernando Henrique Cardoso e de Lula, quais os méritos de cada um, na sua avaliação?
Schwartzman - O grande mérito do presidente Fernando Henrique foi a organização da economia. Ele pegou a economia em absoluto caos, com a inflação absolutamente fora de controle e conseguiu, com a ajuda de bons economistas, dar organização ao Brasil. O grande impacto sobre a redução da pobreza se deu ali. Fernando Henrique permitiu que o País se beneficiasse dos investimentos internacionais. Simplificou o funcionamento do Estado, tirou do Estado grandes pesos mortos e começou algumas políticas sociais importantes. Acho que a maioria das privatizações deu certo. Outro feito foi a organização das finanças para a educação fundamental, com o Fundef. Depois o Lula criou o Fundeb, para a educação básica. Esse sistema de organização das finanças é revolucionária no mandato de FH. Depois ele teve o azar do contexto internacional, e a economia não cresceu. Nesse ponto saiu mal.
iG - E Lula?
Schwartzman - O governo Lula teve a sanidade de preservar a estabilidade econômica. Não mexeu no sistema macroeconômico, apesar das pressões, o que permitiu ao Brasil aproveitar a onda da expansão do comércio internacional e da China. Deu ao País um período de bastante facilidade, com superávits financeiros importantes para o governo. No caso do Bolsa Família, Lula criou um programa muito maior e bem mais ambicioso do que havia. Essa ideia de não ter muito problema em dar dinheiro para os pobres é mais forte no governo Lula do que no anterior. É um governo realmente popular. Nas outras áreas, porém, sou muito crítico. Não avançou muito na educação. O programa de expansão das universidades públicas é mal concebido. Falta, por exemplo, uma discussão do porquê e do como. Na saúde não vejo nada. Na verdade, o governo Lula não tinha nenhuma ideia do que fazer. A única ideia que resistiu foi o Bolsa Família.

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